A problemática da caracterização da afrodescendência no Brasil

Com amparo nos artigos 3º e 5º da Constituição Federal, de 1988, e nas normas da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, incorporada ao nosso ordenamento jurídico pelo Decreto nº 65.810/69, instaurou-se o sistema de cotas raciais¹.

Esse sistema visa beneficiar aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos, precipuamente ao acesso à educação superior e à concorrência isonômica em concursos públicos.

A identificação racial é realizada por meio da auto-atribuição e/ou da heteroatribuição de pertença, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. O quê isso significa?

Significa que, a opção pela auto-atribuição ou pela heteroatribuição de pertença racial revolve uma inerente subjetividade, seja do próprio sujeito, seja do observador externo, para determinar o tipo puro (genótipo), ou o tipo aparente (fenótipo).

Objetivar tal processo de identidade racial, estabelecendo-se critérios fenotípicos ou genotípicos, meios de precisão para apurar estes critérios, ou instrumentos hábeis para concluir o enquadramento do sujeito declarante, é o ideal, mas, atualmente, inexiste normativa que determine isso de modo claro.

Significa, ainda, que a classificação de “cor ou raça” não é uma mera invenção burocrática do IBGE. Ela pressupõe um estudo histórico por especialistas e pesquisadores sobre as relações raciais brasileiras nos últimos dois séculos, e, sobretudo, o cumprimento da política de ações afirmativas voltadas à superação da desigualdade social.

Muitos podem pensar que, considerando a mestiçagem do povo brasileiro, tanto o critério da ascendência (ou genótipo), quanto o critério da aparência simplesmente (ou fenótipo), possibilitaria a todo brasileiro, ou a uma grande maioria, ser beneficiário do sistema de cotas, o que parece injusto.

Parece injusto, mas não o é, porque a inexatidão visa ultrapassar a visão de “raça” como realidade biológica, para se alcançar a visão de “raça” como realidade sociocultural, de caráter completamente distinto, e que clama por mudança para minimizar o racismo e a discriminação ainda presentes na sociedade brasileira. Afinal, há um pouco mais de cento e dez anos que a escravidão foi abolida, sendo razoável ainda se perceber traços de exclusão social racial, o que, ressalte-se, não justifica, apenas explica.

Portanto, a adoção desse sistema classificatório é considerado o mais adequado pelo IBGE para estudar a população brasileira e mensurar o impacto do racismo, como vias de auxiliar a formulação de políticas públicas eficazes.

Não se deve olvidar, que o sistema de cotas, além de adotar percentual mínimo (por exemplo, em concurso público determina-se a reserva de no máximo vinte por cento dentre as vagas destinadas para provimento de cargos efetivos e empregos públicos), adota mecanismo de sanção para o caso de declaração fraudulenta, onde o sujeito, além de perder a condição de beneficiário, responde administrativa e criminalmente por crime de falsidade.

Denota-se, ainda, a possibilidade de se realizar entrevista para aferição da adequação do sujeito à concorrência como cotista, desde que pautada em critérios objetivos de avaliação, previamente constantes em algum texto legal, como edital ou regulamento administrativo,².

Ou seja, em que pese a ausência de normatividade expressa, há a presença do princípio da legalidade e da moralidade no processo para a caracterização da afrodescendência. Certamente, como anteriormente afirmado, conferir maior objetividade à classificação é o mais adequado, pressupondo imparcialidade dos avaliadores, e a observância em critérios isonômicos.

Nesse sentido, em se caracterizando subjetividade e consequente discriminação, após procedimento administrativo, se cabível, oportuniza-se a busca da efetivação do direito no Poder Judiciário.

Infelizmente, a jurisprudência destoante não oferece muita segurança jurídica nessa seara. Enquanto, por um lado, se preconiza pela mera condição de afrodescendente, sem revolver qualquer subjetividade3, há entendimento contrário, que descaracteriza a auto-declaração, quando o sujeito declarante possui pele “branca”, e/ou não possui traços de antepassados “negros”, ou, ainda, quando sua realidade sócio-econômica não se amolda à realidade de grupos socialmente desfavorecidos4.

Se as cotas raciais provocarão a diminuição do racismo ainda existente, ou se resolverão o problema da desigualdade social, são perguntas que só serão respondidas a longo prazo. Enquanto isso, a luta para tanto pertence a todos nós.

Por Ingrid Moraes (Cassel Ruzzarin Santos Rodrigues Advogados)


 

[1] Conforme: art. 1º, da Lei nº 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial); art. 3º, da Lei nº 12.711/2012 (dispõe sobre a reserva de vagas na educação); e, artigos 1º e 2º, da Lei nº 12.990/2014 (dispõe sobre a reserva de vagas em concurso público).

[2] Veja-se o recente julgado do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em que frisa a prevalência da objetividade sobre a subjetividade: “ADMINISTRATIVO. ENSINO SUPERIOR. INGRESSO NA UNIVERSIDADE. SISTEMA DE COTAS RACIAIS. ENTREVISTA. CRITÉRIOS SUBJETIVOS. ILEGALIDADE. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. FENÓTIPO NEGRO OU PARDO. NÃO COMPROVAÇÃO.

I – A entrevista para aferição da adequação do candidato à concorrência especial das cotas raciais se posta legal, desde que pautada em critérios objetivos de avaliação. “Não há, pois, ilegalidade na realização da entrevista. Contudo, o que se exige do candidato é a condição de afrodescendente e não a vivência anterior de situações que possam caracterizar racismo. Portanto, entendo que a decisão administrativa carece de fundamentação, pois não está baseada em qualquer critério objetivo (…) Considero que o fato de alguém ‘se sentir’ ou não discriminado em função de sua raça é critério de caráter muito subjetivo, que depende da experiência de toda uma vida e até de características próprias da personalidade de cada um, bem como do meio social em que vive. Por isso, não reconheço tal aspecto como elemento apto a comprovar a raça de qualquer pessoa.” (STF – ARE: 729611 RS, Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 02/09/2013, Data de Publicação: DJe-176 DIVULG 06/09/2013 PUBLIC 09/09/2013). II – O presente caso é ainda mais gritante porquanto do ato administrativo colacionado como manifestação da banca acerca da exclusão da candidata do sistema de cotas raciais não se extrai qualquer fundamentação. Há apenas a reprodução das perguntas e das respostas da autora, e uma marcação da banca atestando o indeferimento do pleito. Na mesma linha, a resposta ao recurso administrativo foi, deveras, generalista. III – Por outro lado, nada obstante se reconheça a ausência de fundamentação para a exclusão da candidata no ato de entrevista, a apelante não se desincumbiu, nesta demanda judicial, da comprovação de seu fenótipo negro ou pardo, fator que a impede, por ora, de concorrer pelo sistema de cotas raciais. IV – Apelação Parcialmente provida. Determinação de realização de nova entrevista para aferição da ração negra ou parda a partir de critérios objetivos. Sucumbência recíproca. Suspensão da exigibilidade da cobrança para a autora, já que beneficiária da gratuidade de justiça”. (TRF-1 – AC: 122238720094013400, Relator: JUÍZA FEDERAL HIND GHASSAN KAYATH, Data de Julgamento: 28/07/2014, SEXTA TURMA, Data de Publicação: 08/08/2014). [Destaque nosso].

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