Cotas Raciais em Concursos Públicos: há uma franca evolução?
Publicação de Instrução Normativa atualizou e aperfeiçoou as regras de aplicação da Lei 12.990/2014
Por Daniel Hilário
Cotas Raciais em Concursos Públicos: há uma franca evolução?
Publicação de Instrução Normativa atualizou e aperfeiçoou as regras de aplicação da Lei 12.990/2014
*Por Daniel Hilário
É mais do que sabida a disparidade social que existe no Brasil. E ela não é somente patrimonial, mas também de oportunidades, afinal, há cidadãos brasileiros que nascem em famílias que possuem condições para que tenham uma vida tranquila e sem percalços. Lado outro, há pessoas que sequer sabem se vão comer no dia seguinte.
Diante dessas distorções sociais, temos as chamadas ações afirmativas, que nada mais são que: “políticas sociais de combate a discriminações étnicas, raciais, religiosas, de gênero ou de casta, para promover a participação de minorias no processo político, no acesso à educação, saúde, emprego, bens materiais, entre outros.”[1]
Vale dizer, a escravidão de pessoas negras vigorou no Brasil por longos 348 anos e, após sua abolição não foram dadas condições para que esse extrato populacional, agora constituído de pessoas livres, pudesse se promover. Pelo contrário, foram proibidas de comprar terras, de votar e de até se manter nos centros urbanos, sendo vítimas de políticas higienistas e que as retirou para as periferias das grandes cidades.
No âmbito dos concursos públicos, de forma a minorar a distância entre candidatos negros (pretos e pardos)[2] de outros concorrentes que não experimentaram o mesmo alijamento social, foi publicada a Lei 12.990/2014, que reservou aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.
No entanto, a Lei citada deu apenas os contornos gerais de tal reserva de vagas, sendo regulamentada, devidamente, a partir do ano de 2016, por meio da Orientação Normativa n. 3 de 1º de agosto daquele ano. No entanto, tal Orientação, advinda do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (MPOG), dispôs, tão somente, de regras para a aferição de veracidade da autodeclaração prestada por candidatos negros, prevista no artigo 2º da citada Lei 12.990/2014.
Naquela ocasião, a orientação trazia ajustes quanto a previsões editalícias e bem como a necessidade de uma comissão para analisar o candidato presencialmente, de forma a assegurar que o que fora declarado estaria de acordo com os quesitos de cor e raça utilizados pelo IBGE.
Inclusive, no ano de 2017, o STF, por unanimidade, declarou a constitucionalidade da Lei de Cotas Raciais (12.990), com a seguinte tese: “É constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação[3] desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa”
Por isso, no ano subsequente, foi publicada a Portaria Normativa n. 4, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Nela, para além das regras de aferição de veracidade da autodeclaração, regulamentou-se todo o procedimento de heteroidentificação complementar à citada autodeclaração.
Dessa vez, além das mesmas definições da Orientação Normativa n. 3 quanto á autodeclaração, foram definidos parâmetros em relação aos princípios e diretrizes norteadores do citado procedimento de heteroidentificação, e seus pormenores, como a formação de uma comissão para ele dirigir, sua composição, além de uma fase recursal, que passaria a contar com comissão avaliadora distinta daquela que analisou o candidato inicialmente. Tratou-se, portanto, de grande aperfeiçoamento na aplicação da Lei.
Em 2021, houve uma pequena alteração na Portaria Normativa n. 4 foi feita, por meio da Portaria SGP/SEDGG/ME n. 14.635 de 14 de dezembro: Enquanto na publicação original a não confirmação da autodeclaração, pela comissão instalada, resultava na eliminação sumária do candidato, desta feita, ao invés disso, e desde que a autodeclaração não fosse eivada de falsidade, o candidato poderia concorrer às vagas destinadas à ampla concorrência.
Chegamos, portanto, a este ano de 2023, em que foi publicada a Instrução Normativa MGI n. 23, de 25 de julho. Esta, oriunda do recente Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, tomou um escopo mais amplo que os atos anteriores, pois ao invés de regulamentar somente a análise da autodeclaração, ou o processo de heteroidentificação, passou a disciplinar não só a reserva de vagas para pessoas negras nos Concursos Públicos (Lei 12990/2014), mas também nos processos seletivos de contratação por tempo determinado (regidos pela Lei 8.745/1993) nos âmbitos dos órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
Assim, além de consolidar o que já havia sido regulamentado, aperfeiçoando os procedimentos anteriormente adotados, trouxe novas determinações quanto a conceitos, reserva de vagas em procedimentos simplificados, formas de aplicar a reserva de vagas no decorrer do certame e a adoção, ou não de cláusula de barreira, regras para quando não houver preenchimento de vagas reservadas. Ainda, esmiuçou-se, ainda mais, a forma que se darão os procedimentos de heteroidentificação, a formação de sua comissão, os critérios para confirmação ou indeferimento da autodeclaração e sua fase recursal.
Por fim, determinou-se que os órgãos registrem em seus sistemas os cotistas aprovados, para monitoramento e avaliação da ação afirmativa da Lei 12.990/2014, e deixou a cargo de órgão e entidades integrantes do Sistema de Pessoal Civil da Administração Federal – SIPEC, a implementação de outras estratégias de gestão para maximizar os resultados da implementação da Lei citada.
Em suma, pudemos ver a claro avanço, por parte da Administração Pública Federal, no sentido de aperfeiçoar a aplicação da Lei de Cotas Raciais em Concursos Públicos. A parametrização de suas determinações e indicações objetivas de seu âmbito de aplicação, facilitam o uso da ação afirmativa contida nela, e acaba com as dúvidas em seu uso, afastando a subjetividade de seus aplicadores, a saber, examinadores e avaliadores das Bancas de Concursos e dos Órgãos Públicos.
Inclusive, um dos efeitos dessa legislação afirmativa, foi justamente o aumento do percentual de magistrados negros, registrado pelo CNJ após a realização da “Pesquisa sobre Negros e Negras no Poder Judiciário”[4]. Nela, registrou-se 21% de negros, diferentemente dos 12% dos anos anteriores a 2013. No caso dos servidores, o número se manteve estável, com aumento de 1 ponto percentual (31% em 2020, contra 30% em momento anterior a 2013).
Dessa forma, podemos afirmar, com clareza, que há, sim, evolução na aplicação da norma, que só tem a contribuir para a diminuição da desigualdade social presente no Brasil.