Teoria do Fato Consumado em Concursos Públicos: a questão está resolvida?

Discutir a aplicação da teoria do fato consumado nas lides que gradeiam concursos públicos é tema que revolve perturbador problema da ciência jurídica, mormente quando se verifica que o decurso do tempo, malgrado constituir um evento natural, tem efeitos sobre as relações jurídicas, no que diz respeito à sua continuidade ou dissolução.

A indeterminação temporal pode gerar situações insustentáveis sob o aspecto da justiça, sendo desejável que as relações de direito se consolidem no tempo, trazendo segurança jurídica e paz pública. Essas considerações auxiliam a compreensão do problema proposto: sob que lentes a jurisprudência legitima a aplicação da teoria do fato consumado nas demandas jurídicas de concurso público?

O entendimento jurisprudencial que se sedimentou nos tribunais, pacificado inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça, atina no sentido de que a teoria do fato consumado não é aplicada, por exemplo, para candidatos reprovados em exame psicotécnico, e que venham a participar de curso de formação, logrando posse em cargo público, por força de decisão judicial liminar. O entendimento do STJ é que a decisão de caráter precário na matéria entrega ao candidato mera expectativa de direito à nomeação.

São muitos os julgados[1] que de forma rebarbativa trazem o aludido entendimento, e há julgados que conclamam até mesmo ofensa ao artigo 37, da Constituição Federal, se se pretender perfilhar raciocínio contrário, já que pela cassação de uma decisão liminar, a exigência de nomeação de candidatos aprovados e classificados dentro do número de vagas não poderia jamais ser afastada.

Afirma-se ainda que, diante de um provimento judicial precário, o próprio candidato assume o risco da reversibilidade da decisão que lhe foi favorável, sendo certo que a participação do candidato no certame, repita-se, por conta de juízo perfunctório, e que resulta em sua aprovação, não induz à aplicação da teoria do fato consumado.

A despeito da aparente impossibilidade de relativização da jurisprudência face aos argumentos lançados, o Superior Tribunal de Justiça tem agido com temperança, reivindicando a aplicação daquela teoria em excepcionalíssimas hipóteses, evitando que a recusa à aplicação do fato consumado converte-se em um dogma no âmbito daquele tribunal.

Relevante assinalar nesse sentido o pronunciamento da Primeira Seção, ao ensejo do julgamento do Mandado de Segurança nº 15.470/DF[2], em que um candidato empossado por força de decisão liminar, mas com superveniente denegação de segurança após 14 anos, teve reconhecida a estabilidade de sua nomeação, a ponto de contemplar em definitivo a situação fática consolidada, ao abrigo da teoria do fato consumado.

Em outro Mandado de Segurança, a relatora, Min. Eliana Calmon, expôs com sensibilidade o tema:

É constrangedor ver-se uma pessoa com quase cinquenta anos, com situação funcional segura, ver-se alijada do seu emprego, de suas funções e da sua remuneração, sem ter dado ensejo aos fatos temporais que praticamente tornou irreversível o retorno ao ponto de partida.

O que fazer? Ser técnica, ortodoxa e positivista ou, diferentemente, à vista do fato concreto, encarar a realidade das coisas o nome que tem de ser dado: FATO CONSUMADO E CONSOLIDADE, impossível de ser alijado pelos julgadores[3].

Em outro recente julgamento, também o Ministro Humberto Martins, aplicou a teoria do consumado. Em suas palavras:

Não desconheço, a força da tese, inclusive aplicada nesta Corte Superior por sua Terceira Seção, segundo a qual a teoria do fato consumado não pode resguardar situações precárias, notadamente aquelas obtidas por força de liminar, em que o beneficiado sabe que, com o julgamento do mérito da demanda, o quadro fático pode se reverter.

Todavia, o caso concreto possui peculiaridades que afastam os precedentes da Terceira Seção. A situação das autoras, inicialmente precária em decorrência de antecipação de tutela que permitiu a realização da prova de aptidão física – barra estática – diferentemente da outras candidatas e posterior nomeação, após a aprovação nas outras etapas do concurso público, ganhou solidez após tantos anos no exercício do cargo público com o respaldo do Poder Judiciário, o irreversível a situação fática do objeto da ação[4].

É possível extrair da causa de decidir de cada um dos três precedentes citados um fundamento valorativo, marcado pelo conceito de justiça, sobrelevado pelo princípio da dignidade da pessoa humana, imbricado à noção concatenada no início deste artigo acerca da preocupação do direito em consolidar as relações jurídicas no decurso do tempo, ideia essa que, mesmo de forma tímida, e ainda muito excepcionalmente, encontram tônica no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, o bastante para dizer que a teoria do fato consumado em concursos públicos não está resolva. E é isso que importa.

Por Kayo Leite


[1] Entre tantos, cf. AgRg no REsp 1.018.824/SE, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe 13/12/2010; MS 12.786/DF, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, Dje 21/11/2008; AgRg nos EDcl no REsp 1.331.012/MS, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, DJe 13/3/2013.

[2] MS 15.470/DF, Rel. Min. LUIZ FUX, Rel. para acórdão Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, DJe 24/5/2011.

[3] MS nº 15.471/DF, Rel. Min. ELIANA CALMON, DJe 12/6/2013.

[4] AgRg no ARESp 287.599/DF, Rel. Min. HUMBERTO MARTINS, DJe 16/5/2013.

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